Opção 1 (da eficácia dos fluidos): Não posso dizer que o corpo, no sentido dum físico corpo humano, tenha sido tema recorrente na minha pintura. Poderei no entanto constatar que a minha pintura se relaciona com o corpo, com o meu corpo, pois a escala do meu fazer pelo traço ou pela massa de fluidos que utilizo, mantém com ele especial e inevitável ligação. É na dimensão do gesto, no caminhar de uma mão, na distância dum braço, que se revela a minha pintura. Preenchendo, de manchas ou linhas, painéis ou paredes, ou os seus fragmentos, represento um espaço que me mede e me posiciona, mas que também cria espaço para outros olhares que não o meu. Os meus movimentos, lentos ou rápidos, de grande ou pequena amplitude, antecipam os lugares onde o olhar do corpo se pode abrigar, envolvido que fica no ambíguo campo das vivências.
Opção 2 (a prática é enganadora): A minha pintura cria corpo na soma de todas as pinturas que fiz durante a minha prática de pintor. Essas imagens adicionam-se umas nas outras estruturando a “obra”, a imagem total que me explicaria. Mais do que o já de si significativo cruzar de olhares, é pretendido, ou melhor exigido, que o pintor se revele na sua pintura. Querem procurar-me em cada mancha de cor, por cada risco que sulquei, por cada sombra que desejei. É a matéria da pintura que se faz corpo, todavia trata-se de um outro corpo fora do meu corpo. Será privilégio, ou melhor missão, do pintor, sistematicamente enganar pela sua prática o corpo da pintura que cria.
Opção 3 (torna e retorna): Terminei recentemente uma série de pequenos trabalhos, em pintura sobre chapa de alumínio recortada a que chamei ” pequenos corpos”(2012). A razão deste título é encontrada na singularidade do formato destas placas, resultantes da manipulação em computador da linha de contorno do desenho de pequenos objectos, objectos de uso comum (posso falar de chávenas, garrafas, galheteiros, cadeiras, gatos, insectos, enfim objectos ou animais próximos de mim e do uso do meu corpo ou da minha mão) que foram manipulados em termos de distorção, deformação, fazendo resultar novas formas. No entanto estas novas formas de novo evocaram determinados objectos ou animais, parecendo persistir nessa vocação incontrolável que é a de nomear e identificar o que nos rodeia afim de darmos estabilidade ao nosso universo, à nossa realidade. Absorve assim o nosso corpo tudo o que lhe é exterior, assimilando por caminhos circulares o mundo que nos rodeia. Poderia dizer então que o meu corpo se constitui, se forma, cresce, em todos os outros corpos e que a minha pintura não é mais do que o meu corpo, momentaneamente fora de si.
Opção 4 (inofensivo divertimento): Porque há diferentes modos de exprimir pintura imaginemos um paralelo dalgumas das minhas pinturas com as partes do meu corpo, simulando as minhas dimensões, o meu estender de braços, pernas ou pénis, enfim, o meu corpo feito pintura: nos trabalhos que intitulei “badges” (2011) além do que este título anuncia – escudos armados, destroçados na força de um gesto, reformulados nas camadas de tinta que os invadem – esta peças são também cabeças, cérebros, em que os seus atributos se espalharam nos limites do contorno, entre orelhas e narizes destorcidos, olhos desnivelados, sinuosas circunvalações. O pensamento, que naturalmente se origina pela actividade cerebral, encontra-se distribuído, derramado, em improváveis misturas de cores, prefigurando aceleradas sinapses em perturbado campo de neurónios.
A minha obra “24 bars” (2011), evoca uma cabeleira farta de “risco ao meio”, e embora lhe chame também Medusa só muito transviado convocaria a Gorgone, pois estes cabelos, nada encaracolados, apenas ligeiramente ondulantes, como inofensivas cobras de água e não víboras, afastam qualquer possibilidade de afrontamento do monstro.
Já nas obras “flutuante” (2010/2012) a física presença de uma chapa ondulada balançando em direcção ao espectador, fazendo sair a pintura da “janela” para dentro, esmagando, provocando o olhar e quem olha, surge como um tronco, um forte e largo abdómen, pronto para todos os embates e não preocupado com o peso certo ou o bom comportamento.
Como múltiplos pénis em erecção, prontos a penetrar no que quer que seja, me aparecem as obras simplesmente chamadas “bars” (2010/2012), emanando a sua intrínseca força em chapas de alumínio que mais não são que a materialização de largas pinceladas de espessa tinta, redundantemente preenchidas com coloridos fluidos. Estaria assim esta corporização sexual já anunciada no momento do desenho destes deformados contornos? Pretenderam este desenhos algo mais do que afirmar a força da pintura, a expressão do deambular do pincel, da trincha, da espátula, efectivos símbolos da prática da pintura?
Pernas e braços também os encontros noutras obras, como na série “topografias” (2009/2012), em que os conjuntos de distorcidas formas lembram membros em equívocos entrelaçados. Serão estas peças reveladoras dum nervoso corpo ou apenas dialogam entre si criando mapas em procura da inusitada ordem da Natureza e do Mundo?. Evocarei os pés deste imaginado corpo, amálgama dos devaneios incertos dum pintor que vos interroga, na minha peça de chão , “piso zero” (2004) ou mais recentemente nas obras “ground (2011/2012). São nada menos que pegadas, registos, marcas de uma pintura que se quer invasora do espaço que a pretende conter e que procede dum corpo, inevitavelmente o meu, interferindo no mundo das imagens para perceber o mundo em que vivemos.
E por fim falemos de pele. Aclamo agora a superfície da pintura. Refiro-me à textura, que o uso dos pigmentos e as espessuras que tomam nos diluentes que lhes dão corpo, originam na forma como se colocam nos suportes. Mas a pele surge assim na sucessão das dobras, no modo como a tinta se envolve nela própria, como as cores se misturam no processo da sua manipulação e secagem. Provavelmente já estou aqui a falar de sangue, de contaminação. Trata-se de facto de uma contaminação, de uma pele contaminada: as cores invadem os suportes alterando-lhes a forma, simulando profundidades, extravasando visualmente os limites físicos que as contêm. As séries sobre papel a que chamei “trasfondos”, “travessos” ou “céus sombrios (2009/2012) são verdadeiras epidermes, pele detrás da pele. Experimento assim o que está pela frente e por detrás da pintura, experimento o meu corpo noutro corpo O corpo é feito dum corpo. O corpo simula um corpo. O corpo faz-se corpo.
Pedro Calapez, Novembro 2012