Pintura de Jorge Martins
Fundação Arpad Szénes Vieira da Silva, Junho 2017
“Mantenhamos na memória a queixa de Artaud: “Tenho necessidade que o “mal” me encontre, sem isso não consigo criar” . Este poderia ser mesmo o grito que a pintura deveria dar. Paul Klee com certeza que não diria outra coisa: “O Mal não é esse inimigo que nos esmaga ou nos humilha mas uma força colaborante no conjunto das coisas”. E Kandinsky: “Cada obra nasce através da catástrofe”
Jacques Henric, La Peinture et le mal
Não é tarefa fácil falar do Jorge Martins.
Apesar de o conhecer desde os anos oitenta e ir acompanhando regularmente todas as suas exposições, lentamente fui percebendo como me surpreende a sua pintura e o seu desenho.
A sua especial qualidade encontro-a na capacidade de continuamente reinventar o pintado dentro duma estrutura bem conhecida que é a da superfície limitada por quatro lados: o rectângulo, o quadro, a janela primordial.
Essa janela – a que passámos a chamar quadro quando delimitámos as grandes superfícies das paredes afrescadas ou os infinitos padrões bizantinos, procurando aproximar o nosso olhar da realidade, observar o pormenor, detalhar a realidade – é a que Jorge Martins continua a utilizar, não necessitando de sair dela para afirmar a pintura e consequentemente o olhar.
O meu interesse no seu trabalho estabeleceu-se igualmente por constatar que muitas das suas práticas coincidiam com algumas das minhas aproximações ao acto de desenhar ou de pintar.
Invariantes
(em matemática, ”invariante” é algo que não se altera ao aplicar-se um conjunto de transformações)
Nas obras do Jorge creio constatar que determinados elementos, formas ou maneiras de fazer, atravessam transversalmente a sua prática.
a grafite negra ou quase invisível
o preto e branco em toda a gama de contrastes
a fotografia como referente no enquadramento ou citação explícita
a composição
o riscar cruzado, desde a intensidade total ao leve rabisco
a sobreposição do traço
a referência explicita a outras obras
os elementos tridimensionais e sensuais
o corpo, como fragmento e em certos fragmento, na sensualidade dos seus limites e tonalidades
a cor escorrida, diluída, raspada, repintada, apagada
os elementos dispersos que se fazem redes
as formas que se aconchegam umas nas outras
as manchas controladas e descontroladas
os perturbantes e por vezes enigmáticos halos e raios de luz e de cor
Sobre a alegria e o fazer compulsivo
Existe no Jorge uma força no fazer realçada por vezes por uma explícita alegria, pautada por imprevisíveis contrapontos como explicarei em seguida. Força esta aliada à avassaladora profusão de imagens que ele calmamente nos mostra.
Num artigo que li na internet dão-se conselhos a pretendentes à carreira de artista plástico. Este é aconselhado a não referir que gosta de fazer ou mesmo que gosta de experimentar diferentes materiais ou suportes. E é claro não deve produzir em demasia. Um grande número de obras é sinal de baixa avaliação crítica. A arte é vista como um mecanismo sem autonomia que ajuda a expressar determinadas ideias.
Quando há muitos anos visitei uma casa do Jorge, em Lisboa, mesmo junto a S. Bento, as salas e os corredores cheios de obras revelaram-me de imediato que o Jorge sempre construiu o seu trabalho preferindo a naturalidade e o fazer compulsivo, sem limitações ou restrições. Daí a empatia natural que sinto com a profusão das suas imagens.
A enorme capacidade de trabalho de que as suas exposições são prova não provoca qualquer diminuição na seriedade com que desenvolve as suas ideias, conceitos ou preocupações , antes pelo contrário promove sim o progressivo alargamento do seu campo criativo.
Do fazer e dos seus processos
” como em toda operação decisiva, a qualidade dos instrumentos é primordial. O aparecimento da pintura enquanto objecto “separado”, autónomo ( já não dependente da escultura ou da arquitectura) , concretiza-se no quadro pintado, que passou a ter um suporte, uma estrutura própria ( já não se trata duma madeira ou duma parede). A primeira revolução foi então a de agarrar uma base, um suporte. Foi nesse momento que surgiu a ideia da “dimensão dum quadro, enquanto tal, , isto é, enquanto elemento formal fundador. “
Do fundo das suas telas, irrompem fulgurantes cores, por vezes atrevidas, ou amenas tonalidades, que penetram de imediato no nosso olhar. Dos papéis carregados de grafite emanam as profundas intensidades que modelam o claro escuro que da vida e da morte são manifestos.
Em Jorge Martins a pintura surge do fundo para a superfície voltando de novo ao fundo.
As suas imagens constroem-se nos diferentes processos com que faz e desfaz a superfície de trabalho, nos efeitos de apagamento, do deslizar da cor que a pincelada continuamente demonstra, no controlo e controlado descontrolo do gesto.
Mas igualmente nos recorda que no prazer dos materiais e das cores, na composição bem estruturada e equilibrada, existe um reverso, um mundo do menos visível que o espectador atento descobrirá e que se manifesta nas quase imperceptíveis “imperfeições ” que um olhar aproximado irá lentamente descobrindo.
Poderia extremar estas observações no estabelecimento de uma categorização, por exemplo uma especulação entre o bem e o mal.
À superfície da imagem temos o Bem, o estabelecido, o equilibrado, a composição correcta. O mal surge no que está por trás, em dissimulado contraponto.
Ele encontra-se na procura do espaço faz-se pela luz que se confronta com a justaposição ou sobreposição de manchas. A contaminação continua-se por escorridos planos dentro de planos. Uma linha parece não saber onde parar pois rapidamente se vicia na perseguição de um contraste ou de uma outra linha aparentemente sem fim.
Não chegaria ao extremo de dizer como num texto de Philippe Sollers a propósito do livro de Jacques Henric, “La peinture et le mal” :
“cada quadro é um gesto criminal acompanhado por uma oração. Um blasfemar consciente”.
Mas sem dúvida que a obra de Jorge Martins de modo algum se revela como passiva ou acrítica, resultante de uma qualquer prática diletante, mas como referi antes, será uma obra que desafia o olhar incauto, que o põe em causa, que lhe diz que por detrás da pintura está a pintura.
As suas pinturas aparentam, uma delicadeza mas o que o Jorge pretende é tornar evidente o que está por detrás da pintura. Experimenta assim campos de força, tensões inusitadas, expansões espaciais, subtis mares de cores, pontos de luz que se movimentam num campo; tintas escorridas, pequenos sujos, imperfeições, linhas torcidas.
Nos seus fundos, nas superfícies que lentamente descortinamos atrás dos véus de cores que os invadem, se agarra, se controla a “boa pintura” colocando-a no seu devido lugar.
Explicitam-se “estares e momentos”, completando-se a obsessão do fazer numa pintura suja e limpa, calma e agitada, erótica ou mesmo pornográfica, afirmando a consciência dos materiais e dos seu poderes mas também do corpo e da sua força
Jorge Martins revela-nos momentos de linha, espaço e de cor. São momentos que nos colocam a pensar sobre como a luz e sombra se concebem na continua oposição entre uma decisiva inscrição e um quase apagamento.
Como se no vai e vem da mão, no acariciar da tela ou no intenso agredir do papel se traduzisse a essência do resultado final que embala o nosso primeiro olhar e nos obriga imediatamente a olhar de novo.
A pintura do Jorge Martins é uma pintura de duplos, de infinitos olhares.
Sobre as lógicas da montagem
Numa conversa que tivemos comentámos como gostávamos de sermos nós a montar as nossas exposições (Sou invadido por indescritíveis medos, a que se juntam uns tremores miudinhos, quando presencio certos organizadores de exposições pegarem numa obra para a colocarem numa parede. É que na maior parte das vezes não conseguem perceber as relações que um espaço nos vem trazer e como se pode potenciar o olhar do espectador.
Foi o Jorge que determinou a colocação das suas obras nesta exposição na FASVS. Escolheu as sequências, as alturas das obras, a relação com a arquitectura, enfim criou um espaço para o seu olhar, e para o dos outros. Criando circuitos e movimentos, colocou dentro das suas obras o local que lhe tinha sido proposto.
E como são difíceis estes espaços, mas mesmo no mais proporcionado “white cube” se levantam problemas de intricada resolução.
Porque as obras entre si também criam novas ideias e estas às vezes servem-nos, outras não. A intensidade do que se mostra depende de reais distâncias e da ponderação de focados olhares.
Nesta exposição são propostas algumas colocações por afinidades temáticas, mas a deliberada inclusão de trabalhos de épocas muito diferentes junto a trabalhos recentes, levam o visitante a questionar-se porque assim é. Eventualmente o Jorge terá uma explicação simples mas para mim trata-se da tentativa de olhar para si próprio com distância, a distância que o tempo que passa origina, colocando trabalhos recentes a olhar para outros mais antigos e a tentar perceber como aguentam esse desafio.
Ver um trabalho feito há 30 ou 40 anos é uma experiência especial. Descobrimo-nos em aspectos que havíamos esquecido, reconhecemos que afinal sempre procurámos a mesma coisa, compreendemos que nunca nada sabemos, e que é no esquecimento de nós mesmos que encontramos o que faremos a seguir.
É como se no início houvesse uma multidão de escolhas possíveis que se foram organizando e desenvolvendo durante anos até hoje.
Possivelmente os desenhos da nossa infância conteriam já, sem o sabermos preocupações que nos vieram a ocupar durante tanto tempo, um tempo que não imagináramos tão longo pois curto ele nos parece para o que ainda temos que fazer.
Uma última nota
Algures nos anos noventa o Jorge propôs oferecer-me diversas grades de madeira, grades que ele tinha usado e já não queria ou ia deitar fora.
Eram mais de quarenta. Levei-as para o atelier e pedi ao meu assistente que as limpasse dos restos de tinta, de velhos pregos e em seguida as preparasse e nelas esticasse a tela. Mas fiquei a olhar para elas sem saber o que fazer.
Não sei se o seu formato – muitas nos standards figura, marinha, paisagem, formatos tradicionalmente tipificados nas casas dos materiais de belas artes – fez com que o vazio da tela se impusesse, tão diferentes eram do que costumo usar.
Parecia que aquelas grades me diziam que já antes tinha sido outras telas, que foram manipuladas, pintadas, destruídas; ou emanavam reminiscências de outros gestos ou de outras ideias que não as minhas. Assustou-me a possibilidade de não conseguir pensar a minha própria pintura.
Arrumei-as num canto do atelier dada a impossibilidade que nesse momento senti em as pintar
Talvez dez anos mais tarde, numa daquelas tarde em que não sabemos o que fazer, decidi limpar-lhes o pó e experimentar alguma coisa. Resultaram manchas e cores maravilhosas. Continuo a não saber se são minhas. Suspeitei sempre que estas grades já vinham bem ensinadas.
“A pintura é a intrusão do detalhe ínfimo por esmagamentos sucessivos dos montões de substanciais menus de pigmentos coloridos contra a tela, é o grão de areia que vem emperrar o mecanismo bem oleado da reprodução da espécie. É o efeito <<tilt>> do toque que gela a Génese infernal e nos dá a ver, entre duas jogadas na máquina de flippers, as esferas que continuam eternamente a saltitar entre os miseráveis fornecedores de carne fresca: o acaso e a necessidade”
Jacques Henric, La Peinture et le mal
Um abraço.
Pedro Calapez
Lisboa, 2017/07/06