Curator: Mário Caeiro e José Moura
Pedro Calapez presents at the Library of the Nova University at Campus de Caparica his most recent solo show inspired by the work “A journey around my room” of the author Xavier de Maistre. Between paintings, drawings and installations, this exhibition creates a liveable space for the spectator.
Pedro Calapez apresenta na Biblioteca FCT-Nova no Campus de Caparica um conjunto de trabalhos inéditos realizados a partir de uma leitura do célebre livro de Xavier de Maistre Viagem à Volta do meu Quarto. Entre a pintura, o desenho e a instalação, a exposição proporciona um espaço vivenciável pelo espectador.
Da estruturação do devaneio, em volta de Calapez na Caparica
A grande arte de um homem de génio é saber educar bem o animal para que possa caminhar sozinho, enquanto a alma, liberta dessa penosa convivência, poderá elevar-se até ao céu. – Xavier de Maistre
A obra de Calapez é um livro a abrir-se. No irredutível destes traços e sombras vislumbra-se uma rigorosa economia da atenção que funciona como diagrama de um universo em contínua expansão. É um universo assaz monitorizado, cada obra integrando resolutamente a linguagem do mundo, o discurso dos acontecimentos, numa concisa suspensão do constante fluxo de eventos.
Esta exposição nasce da leitura de um livro que inventa um diálogo consigo próprio, entre o autor e a personagem (autobiográfica), perscrutando o espaço à sua volta e a condição em que se encontra). O que lemos em Viagem à volta do meu quarto (1795; Tinta da China, 2015) são sucessivos encontros de Xavier de Maistre com desvios – do olhar, do escrever – que vão constituindo um rasto de reflexão, uma jornada. Trata-se, ao limite, de um ensaio literário sobre a criação enquanto processo de conquista do real em que o constrangimento motiva a partida interior. No caso de Maistre – confinado durante 42 dias em prisão domiciliária – a descoberta-invenção do projecto de escrita é o relato de um alegre andar no encalço das próprias ideias, tal como o caçador persegue a caça, sem procurar determinado percurso.
Calapez encontrou em Maistre uma alma parceira nessa deriva essencial que é perdermo-nos no movimento para nos encontrarmos com as estruturas subjacentes ao que nos condiciona. Nessa viagem que ao tomar consciência de si mesma procede à reflexão sobre a alteridade de cada troço, cada nova peça torna-se aventuroso trajecto numa espécie de esquema animado (por uma irredutível energia vital). A arte ilumina os caminhos do ver, transformando-nos no nosso próprio desejo de procurar.
É Calapez um pintor claramente performático neste sentido, apelando à possibilidade da nossa participação na intencionalidade programática da sua gestualidade. E veja-se como a aproximação modernista, de investigação formal, se compatibiliza com o mais contemporâneo (ou pós-moderno) dos apelos, incluindo o de tacticamente atentar ao enquadramento (temático, institucional, contextual) para que cada obra – enquadrada pelo frame que legitima a sua função social – se assuma como lugar transformativo.
Nesta exposição, o espectador é elemento particularmente activo na deambulação. O conjunto de trabalhos activa o espaço na medida em que convida a aproximações e afastamentos, ao devaneio do olhar. Fragmentos, planos, recortes. Mancha, cor, imagem. Linha, estrutura, encaixes. Complementaridades. Composição. Caminhos. Elenco factores decisivos no assalto aos meus sentidos perpetrados por esta pintura e este desenho que definem as condições para uma dialéctica espacial. Nesta conjugação sítio-específica de obras, o olhar, em busca do prazer de ver, transmuta-se em flânerie mental. Tudo isto num tributo ao movimento, particularmente explícito nos 24 emblemas que, rodando sobre si próprios, sugerem intermináveis possibilidades de reconfiguração.
Acumulação de circularidades – estruturas que expõem as suas regras composicionais como base do jogo da percepção, linhas que ao traçar-se se perdem até não podermos destrinçar começos nem fim – em volta de é como sempre em Calapez um exercício de encontros: do artista com o momento específico no desenvolvimento da sua obra; do público com mais um ponto alto num percurso que desde a década de 1980 não parou de inovar; e naturalmente de um enquadramento cultural – os dez anos da Biblioteca – com a irredutibilidade pessoal do Pedro.
No diálogo permanente que Calapez vem mantendo com o seu tempo – desde os primeiros traços, passando pelos sucessivos riscos que tem corrido numa longa carreira – algo de absoluto e essencial, e ao mesmo tempo radicalmente singelo, acontece. Como se a arte fosse meta-linguagem por excelência para configurar o correr da vida. E se a força irracional da alma que possui um artista como Pedro Calapez se plasma na sua tendência para o devaneio, é extraordinária a serenidade que a sua arte actualmente atravessa. O artista consegue hoje essa estranha alquimia de nos resgatar do vício das imagens para precisamente através da sua noção de montagem cinemática educar-nos para uma paisagem interior. Na sua ética da pintura, não somos apenas as circunstâncias da vida, mas sobretudo as linhas com que nos cosemos.
Mário Caeiro, Monte de Caparica, Julho de 2016