uma casa. duas mesas. alguns ramos. um tremor nas mãos. escorre a água sobre a mesa. passo os dedos pelo musgo verde. mordo os dedos até fazer sangue. o frio passa mas vai voltar. a incidência da luz nas dobras na cortina acentuam o suave ondulado. há restos dentro das caixas. apagam-se as lombadas dos livros. o isolado caminho causa desorientação. horizonte limpo. algum pó se acumula no canto da sala. a janela não fecha bem e o som da rua invade este silêncio. a mão procura uma folha. a aguarela desfaz-se na taça molhada. caem as pétalas das flores secas na jarra. o papel amarelece com o espalhar da tinta. outra folha. os hexágonos persas do tapete cruzam os seus vermelhos. são agora seis da tarde. o dia já não se reflecte no edifício do outro lado da rua. ouvem-se as badaladas num velho relógio de parede. vazio. não sei o que penso. as ideias não fluem antes de ter uma imagem. acreditar na dúvida. o que acontece é determinado num decisivo momento. o que acontece no desenho é determinado no decisivo momento de trabalhar. de que tratam os meus desenhos? de que tratam as linhas que traço num papel? uma imagem resulta na combinação de diferentes desenhos. estes continuam-se uns nos outros. geram-se associações imprevistas. caprichos dos movimentos da mão. desligo a luz. Rothko diz que o silêncio é o mais acertado. Para Cacciari é a representação da solidão que nos surpreende e apaixona. Kubin fala-me duma mão desconhecida e imemoravelmente putrefacta que esboça ligeiramente umas linhas sobre uma pequena folha de papel. conheço bem essa mão que foge de mim e revela quem sou sem eu dar por isso. um jornal está aberto sobre a mesa. num modelo, uma cabeça parada, dura e brilhante, anunciam-se distintas faculdades: intuição, raciocínio, reflexão, estrutura, observação, visualização, conhecimento, acção, associação, critica, causalidade, exploração, planeamento, tempo, cor, medida, forma, dimensão, peso, ordem, clareza, sistema, cálculo, estimativa, figura, linguagem, amor, sexo, memória, memória verbal, memória visual, modulação, humor, malvadez, espiritualidade, fé, confiança, egoísmo, especulação, esperança, respeito, veneração, antiguidade, firmeza, consciência, justiça, integridade, circunspecção, ambição, dignidade, auto-estima, independência, conectividade, continuidade, destruição, propensão, constância, história. levanto-me e desloco-me para a porta da sala. as duas meias portas encostadas deixam agora vislumbrar um pequeno cenário. a frincha determina o formato dessa vista, estreita e vertical onde um vermelho e um azul reverberam. vejo também um pequeno papel rasgado. branca e neutra claridade nesse fundo de cor. a paisagem esvazia-se mas fica plena no seu espaço. na sua vastidão o tempo também parou. estar dentro da paisagem é como ter existido desde há muito tempo, como nos diz Nooteboom. o soalho da sala é escuro e encerado. as arestas de cada tábua definem linhas paralelas. está escuro aqui. já não vejo bem. o olhar foca dificilmente os móveis nesta penumbra. balbucio um alfabeto de formas. tento enumerar o inumerável. catalogar o que inevitável e continuamente se transforma. numa referência a Leibniz poderia estabelecer-se que todos os desenhos são o resultado da combinação de um relativamente pequeno número de simples desenhos. todas os conceitos seriam assim expressos em combinações apropriadas de imagens, que se decomporiam em desenhos mais simples. por outro lado, se andarmos ao contrário, elaborando um determinado conjunto de pequenos traços, inesperados e inéditos conceitos aparecerão. os meus bancos de imagens funcionam em múltiplos sentidos e perturbam as escolhas. nada preexiste na folha branca do papel de desenho. o alfabeto das formas desfaz-se nas suas letras. o desenho reencontrou alguma coisa e eu continuo a não entender.
Pedro Calapez, Janeiro 2008